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Revisitando Kardec no momento atual brasileiro

Dora Incontri [1]

A crise social e política que assola o Brasil ultrapassa, e muito, o âmbito da disputa partidária, assumindo-se como guerra ideológica e projetando-se na postura ética individual e nas relações interpessoais. O clima persecutório, intolerante e agressivo que toma conta das redes sociais e mesmo dos ambientes profissionais e familiares provoca-nos graves reflexões para buscarmos um caminho de mudança coletiva para a superação desse caos.

 

Teria a filosofia espírita de Allan Kardec (1804-1869) alguma contribuição a dar neste momento? Trata-se de uma pergunta pertinente, já que o espiritismo no Brasil tem grande representatividade social, embora as respostas certamente não sejam unânimes. O movimento espírita brasileiro está muito longe de uma visão unificada. Há tendências conservadoras e progressistas, à esquerda e à direita. Assim como há interpretações do próprio espiritismo como uma filosofia a ser relida no contexto de hoje, de forma revisionista, aliás como pretendia o próprio Kardec que assim fosse, e outras que se apegam a leituras dogmáticas e pouco afeitas ao diálogo com o mundo contemporâneo.

 

A diretriz seguinte, proposta por Kardec em seu último livro A gênese, às vezes é aplicada de maneira muito fútil, adicionando-se ao espiritismo práticas pouco racionais e modismos de autoajuda fácil, que contrariam seus princípios fundamentais e seus métodos de constituição de conhecimento; outras vezes é simplesmente ignorada por aqueles que se atêm à letra, ou seja, os fundamentalistas, que vicejam em todas as doutrinas, filosofias e religiões:

 

O Espiritismo, marchando com o progresso, não será jamais ultrapassado, porque se novas descobertas lhe demonstrarem que está errado num ponto, ele se modificará sobre esse ponto, se uma nova verdade se revelar, ela a aceitará. (KARDEC, 1977, p. 30)

 

Recuperemos, entretanto, alguns dados históricos:

 

Pestalozzi (1746-1827), mestre de Kardec, foi condecorado pela Revolução Francesa e pertencia a uma tradição iluminista que prezava pela emancipação das classes populares por meio da educação. Ele próprio trabalhou a vida toda por essa bandeira, tendo pertencido também na juventude ao grupo dos “patriotas”, que criticava as diferenças sociais na Suíça de então e pleiteava plena liberdade de expressão.

 

Pestalozzi recebera forte influência de Rousseau que, poderíamos dizer, era o menos burguês dos iluministas.

Antes de se tornar Kardec, Hippolyte Léon Denizard Rivail, por sua vez, levou as ideias pestalozzianas para a França, empenhou-se por projetos inovadores de educação (da qual pretendia fazer uma ciência, precedendo algumas ideias da pedagogia científica do século XX) e trabalhou pela educação pública, tendo publicado, por exemplo, um interessante texto, Plano proposto para a melhoria da educação pública, no qual enfatizava, entre outras medidas importantes, a formação necessária do educador.

 

Durante sua vida pré-espírita, Rivail conheceu socialistas (que depois seriam chamados de utópicos por Marx), fundou um banco popular com Maurice Lachâtre (editor anarquista francês), uma ideia semelhante à de Proudhon, uma espécie de banco cooperativo (GAUDIN, 2014). Dirigiu um instituto de educação e fazia igualmente um trabalho de ensino gratuito para adultos.

 

Datava de 1833 a Lei Guizot, que garantia a liberdade de ensino na França, da qual Rivail se prevaleceu para fazer uma educação de livre pensamento, desligada de confessionalismos (como aliás aprendera com seu mestre Pestalozzi, em Yverdon, onde conviviam crianças de diversos credos e sem credos). Mas, com a ascensão de Napoleão III (apelidado por Victor Hugo de Napoleão, o pequeno), foi para o ministério da Educação, um católico fervoroso, Alfred de Falloux, cuja divisa era: “Deus na educação. O papa à frente da Igreja. A Igreja à frente da civilização”. Partidários de Falloux temiam as ideias iluministas e socialistas que uma educação livre poderia divulgar e retrocederam historicamente (por algumas décadas), devolvendo grande poder à Igreja em sua missão pedagógica de doutrinar as massas.

 

Rivail deixa, pois, a educação. Depois de 1850, data da Lei Falloux, vê-se às voltas com graves dificuldades financeiras, tendo de assumir a função de contador para sobreviver. Os espíritos livres não podem ensinar em clima de confessionalismo obrigatório.

 

A partir de seu envolvimento com os fenômenos mediúnicos, no início das mesas girantes nos salões europeus, Rivail, então adotando o pseudônimo de Allan Kardec, começa a publicar seus livros da fase espírita, constituindo uma filosofia de caráter racional, que pretendia se apoiar em pesquisas de observação, de que derivava uma proposta ética.

 

Pois logo no seu primeiro trabalho e, penso, o mais importante de todos, O livro dos espíritos, há diversos itens tratando de questões sociais: por exemplo, até que ponto a propriedade é legítima ou não, a organização econômica, os direitos da mulher, a igualdade social, a liberdade de pensamento, a pena de morte, a escravidão etc. Em todas essas questões, O livro dos espíritos, que Kardec publica em forma de diálogo, se põe de maneira progressista para a época. Contrário a preconceitos, priorizando a igualdade entre todos; contra a pena de morte e as leis rígidas e opressoras; a favor da liberdade de expressão; a negação de que toda propriedade é legítima, pois se aponta o roubo como fundamento de muitas fortunas e a proposição de que a propriedade mais legítima é a coletiva; a igualdade de direitos entre homens e mulheres; a oposição à exploração do homem pelo homem, seja no trabalho escravo, seja no trabalho excessivo e opressor; a crítica às necessidades supérfluas criadas pela civilização; a necessidade de leis e de uma organização social e econômica em que não haja miséria e fome etc.

 

Talvez o trecho abaixo resuma bem o que Kardec considera uma verdadeira civilização (que não é apenas a da prosperidade econômica, nem apenas de avanço científico e tecnológico):

De dois povos que tenham chegado ao ápice da escala social, só poderá dizer-se o mais civilizado, na verdadeira acepção do termo, aquele em que se encontre menos egoísmo, cupidez e orgulho; em que os costumes sejam mais intelectuais e morais do que materiais; em que a inteligência possa desenvolver-se com mais liberdade; em que exista mais bondade, boa-fé, benevolência e generosidade recíprocas; em que os preconceitos de casta e de nascimento sejam menos enraizados, porque esses preconceitos são incompatíveis com o verdadeiro amor do próximo; em que as leis não consagrem nenhum privilégio e sejam as mesmas para o último como para o primeiro; em que a justiça se exerça com o mínimo de parcialidade; em que o fraco sempre encontre apoio contra o forte; em que a vida do homem, suas crenças e suas opiniões sejam melhor respeitadas; em que haja menos desgraçados; e, por fim, em que todos os homens de boa vontade estejam sempre seguros de não lhes faltar o necessário. (KARDEC, 1972, p. 354, item 793).

 

Como se vê, justiça social, igualdade, respeito à liberdade, proteção ao mais fraco – tudo isso faz parte de um ideal de civilização que Kardec propõe, porém realisticamente de forma relativa, comparando-se duas sociedades, sabendo que estamos longe ainda de alcançar tudo isso de forma plena.

 

O que nos interessa, entretanto, é que para ele, educador, assim como para Pestalozzi e diríamos, também um tanto para Rousseau, a argamassa dessa sociedade melhor é o ser humano generoso, bom, tolerante, respeitoso para com o próximo. Ou seja, para os educadores como Kardec, não é apenas a lei que garante a sociedade justa e humanizada. É o ser humano melhor, mais educado, menos egoísta, menos ambicioso, menos predador (poderíamos dizer), que garante uma lei mais justa. E, em última instância, está lá no Livro dos espíritos, uma sociedade, composta de seres humanos melhores, inclusive prescindiria de leis… estaríamos em pleno paraíso anarquista.

 

Então, a que se propõe o espiritismo? Justamente a educar o ser humano para desenvolver nele as potencialidades divinas (aí há, claro, um pressuposto da bondade essencial do ser, pressuposto herdado desde Sócrates e Platão, passando pelo cristianismo aberto de Comenius, Rousseau e Pestalozzi – esses que se afastaram da pecha do pecado original).

Não se trata, porém, de uma ação unilateral essa de mudança pela educação. Kardec se refere também claramente à mudança das instituições, para a qual o homem e a mulher de bem devem trabalhar. Como diria mais tarde José Herculano Pires, filósofo espírita brasileiro: “Transformar o mundo pela transformação do homem e transformar o homem pela transformação do mundo. Eis a dialética do Reino, que o cristão deve seguir”. (PIRES, 1967, p. 136)

 

Ou seja, há a proposição de uma ética pessoal, promovida por um processo pedagógico, para engajar o ser humano na transformação da sociedade; ao mesmo tempo, a sociedade, indo além de suas injustiças, desigualdades e opressões, vai favorecendo esse processo pedagógico, que significa arrancar as pessoas de seu egoísmo, de suas ambições pessoais, para convocá-las a uma ação altruísta e desinteressada.

 

A ética do respeito à diversidade e da tolerância mútua

 

Desde que começou a se dedicar à elaboração do espiritismo, pesquisando fenômenos, formulando hipóteses, desenvolvendo ideias, num diálogo inédito com o mundo espiritual, Kardec foi lançado num fogo cruzado. Duas correntes inimigas de seu trabalho eram a Igreja Católica e os pensadores materialistas. O espiritismo foi alvo da intolerância agressiva de ambas as partes. Ataques pessoais, calúnias, difamações – valia tudo, no afã de combater essa ideia nascente, que aparentemente provocava imenso incômodo. Mais tarde, depois da morte de Kardec, segundo apontei em minha pesquisa de doutorado, adotou-se outra tática mais eficaz: a da conspiração do silêncio. (INCONTRI, 2004)

 

Kardec jamais perdia a compostura nos inúmeros debates que mantinha com padres, abades, jornalistas, médicos, filósofos… Com ironia fina, com argumentos claros e num tom de respeito aos opositores, que nem sempre primavam pela mesma civilidade, Kardec advogava o debate livre, o diálogo construtivo e a saudável divergência de ideias.

Nos volumes da Revista Espírita, periódico mensal que dirigiu e escreveu entre 1857 e 1869, ano de sua morte, uma das palavras mais frequentes é tolerância, acompanhada de suas afins, como benevolência, caridade, respeito… Mostrava que o ódio com que se defende uma ideia só pode ser gerado pela falta de argumentação sólida, pelo desejo de dominar o outro e pelo interesse ferido. Aliás, dizia, contra interesses não há fatos.

Hoje, claro, pelas descobertas que levam aos porões escuros do inconsciente humano, sabemos que há sombras mais profundas que destampam essa agressividade violenta, anuviando a razão.

O que, entretanto, fica como lição de Kardec, antecedendo as propostas de comunicação não violenta de Rosenberg, é que quando nos desarmamos e conversamos, de forma pacífica e empática, convidamos o outro a um nível de debate mais elevado.

É esse desarmamento que precisamos promover no Brasil hoje, visando às metas descritas mais acima, de uma nação de fato mais civilizada, com um caráter igualitário, justo e plural.

 

 

Referências bibliográficas

  • GAUDIN, François. Lachâtre, socialista e espírita. In: INCONTRI, Dora. (Org.). Educação, espiritualidade e transformação social. São Paulo: Comenius, 2014.

  • INCONTRI, Dora. Pedagogia espírita: um projeto brasileiro e suas raízes. Bragança Paulista: Comenius, 2004.

  • KARDEC, Allan. A Gênese. São Paulo: Edicel, 1977.

  • ______. Le livre des esprits. Paris: Dervy-Livres, 1972.

  • PIRES, J. Herculano. O reino. São Paulo: Edicel, 1967.

  • RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard; INCONTRI, Dora; GRZYBOWSKI, Przemysław. Kardec educador: Textos pedagógicos de Hippolyte Léon Denizard Rivail. Bragança Paulista: Comenius, 2005.

  • ROSENBERG, Marshal B. Comunicação não-violenta. São Paulo: Ágora, 2006.

[1] Dora Incontri é jornalista, doutora em Educação pela USP, autora, coordenadora da Universidade Livre Pampédia.

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