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A Dialética do Prazer

João Paulo Lacerda [1]

A Doutrina Espírita tem uma visão original sobre o prazer. (Três dançarinas, Picasso)

Queremos desenvolver aqui uma reflexão sobre as motivações do comportamento humano, conforme a Filosofia Es­pírita. Um ponto de partida interessante é a teoria hedonista que pensa o homem como agindo por um cálculo entre a dor e o prazer. Achamos que favorece a inserção da Doutrina nesta temática. Afinal, temos muito a dizer, e temos dito muito, sobre a dor. Faz parte da nossa missão histórica esclarecer algumas coisas sobre a experiência dolorosa, dignificada no Calvário, mas tão pouco compreendida desde o advento do Cristianismo. A Doutrina Cristã propôs a sua rediscussão, mas não pode aprofundá-la, por faltar-lhe a chave do conhecimento espírita. Coisas assim como a ideia da reencarnação, da lei de causa e efeito, sem as quais fica complicado aceitar um sentido para as fartas dores humanas. Mas também temos muito a dizer – embora tenhamos dito pouco – sobre o prazer. Acreditamos que visão espírita da gratificação tem sua originalidade no debate cultural. Em O Livro dos Espíritos, na terceira parte, no capitulo que discute a Lei de Conservação, no item 712, vemos uma definição de prazer como algo vinculado, orgânico ao processo criativo da vida. O prazer seria uma espécie de salário estimulando as criaturas a exercer determinada tarefa na ordem da Criação. Acreditamos que ali está sintetizada toda uma teoria da economia da recompensa, embora o contexto daquela questão restrinja-se ao prazer na sua dimensão mais física.

 

 

 

 

 

PRAZER DINÂMICO

O prazer na ótica espírita é dinâmico. Como nossa essência é a mudança, ou melhor dizendo, o progresso, mudarão as tarefas, e consequentemente, os “salários”. Ou seja, também o prazer deverá mudar, progredir. E existirão, portanto, prazeres coerentes e incoerentes com determinados níveis evolutivos. Mas quando surgir a necessidade do sacrifício de uma forma de gratificação já adequada, não será equivalente à dor de uma perda definitiva. A um prazer que caducou, deverá suceder, na ordem natural das coisas, um outro mais satisfatório e completo. Esta ideia, associada à lei de causa e efeito, que distribui justamente o prazer e a dor, nos mostra que as motivações humanas constituem parte fundamental do mecanismo evolutivo.

Na evolução gradual e especializada (no sentido de que não podemos conhecer tudo ao mesmo tempo, tem que ser por partes), existem os nichos onde situamos temporariamente na ecologia evolutiva da vida. São horizontes de progresso que se apresentam para serem explorados, até que não ofereçam mais nada de novo ao ser, que então deverá atingir outros para continuar aprendendo. Exploração, limitem, transição a novo patamar, novo movimento de exploração. E assim por diante, indefinidamente. A força horizontalizante, exploratória, é o prazer. A força verticalizadora, de transição, é a dor. Se a metáfora da evolução for uma escada, a superfície horizontal é o prazer, a vertical é a dor. O prazer estimula o conhecer o horizonte que descortina. A dor é a descontinuidade inevitável deste prazer, o tédio, e o esforço de aprender um novo, vinculado a um novo degrau. É também desencorajamento à exploração sem limites, retroalimentada positivamente pela própria essência do estimulo prazeroso, tendendo a repetir-se, a criar inércia, à conservação. Talvez aqui os conceitos freudianos de princípio de prazer e princípio de realidade possam ajudar. Para Freud, existe uma tendência primitiva do ser, mais nítida na criança, em querer gratificação imediata, que não reconhece a dependência ao tempo e às outras pessoas para conseguir recompensa. Com o desenvolvimento psíquico, porém, acabará aprendendo que o prazer real só advém de processos que implicam esforço, espera, interação com a sociedade. Usando tais elementos, poderíamos acrescentar que o prazer seria atemporal, egoísta; a dor, vinculada ao tempo e suas exigências de adequação ao contexto social. O prazer deseja manter tudo sempre igual, para ele está tudo sempre bem assim, não importa o que ocorre no mundo externo ao eu buscando gratificação. A dor deseja o novo, tem um olho no relógio da evolução e traz o ser de volta ao movimento social, ou cósmico, das responsabilidades com a dinâmica evolutiva geral.

Recordamos ainda a um outro símbolo, mais tridimensional, a colmeia. No seu conjunto, representa o conhecimento universal que um dia possuiremos. Os favos seriam aqueles nichos evolutivos, correspondentes aos saltos especializados do progresso. O prazer, a natureza líquida e doce do mel, que faz o espírito em evolução ocupar espaços específicos, expandir-se numa determinada especialidade. A dor, a cera insipida e dura, a delimitação geométrica, disciplinadora da equidade distributiva do “mel” espiritual. Compele o espírito a ocupar outros “favos”, numa lógica evolutiva de utilidade social e contato com o maior número possível de experiencias. Esta alegoria ressalta a função demarcadora, fronteiriça, da dor, organizando as expansões relativas, especializadas, do ser humano na marcha do progresso.

 

INÉRCIA DO PRAZER

Não subestimemos este componente horizontal, conservador, esta retroalimentação positiva, do estímulo prazeroso. É fundamental na psicologia humana, no contexto da chamada reforma íntima. O prazer tem a sua inércia, que, num primeiro momento, é útil ao ser e à economia geral do universo. É preciso que cada favo da colmeia da Criação, cada nicho que surja do turbilhão inteligente do progresso, seja explorado em todas as suas potencialidades. Um exemplo simples. Se nós, seres humanos, nos desinteressássemos da nossa Terra, quem a usufruiria, no seu tempo fugaz diante da Eternidade? Os animais, insensíveis? Os anjos, da sua perspectiva sideral, em que os detalhes planetários se apagam na visão do grande conjunto? Não somos nós mesmos que temos que olhar o azul do céu, o incêndio solar dos fins de tarde, abrigando-nos à sombra das árvores para o encontro afetivo e a contemplação da beleza. Somos nós que temos que sorver as palavras humanas com sua peculiar poesia, diferente de todas as outras. A nós cabe a tarefa de memorizar este nicho, este horizonte, que um dia não será mais, fisicamente, mas que permanecerá, em seu pleno significado de vivência, no nosso coração imortal. Esta é a grande e sublime missão do prazer, quase sinônimo de vida, na sua pulsão por felicidade.

Mas o prazer tem a sua inércia, como dizíamos. Quando o seu movimento atinge os limites da utilidade universal, quando aprendemos tudo o que poderíamos sob o seu poderoso influxo, ele pode se tornar negativo, se quisermos usufruí-lo indefinidamente, naquela determinada modalidade. Esquecemos de que ele é apenas um “salário” ajustado a uma tarefa limitada. Olvidamos, mesmo, o preço de trabalho, gasto de energia, ou por outras palavras, da dor, que pagamos para entrar na posse da sua instrumentalidade. Parece que sempre foi assim e sempre o será. Temos preguiça de efetuas novamente o esforço, o sacrifício doloroso implicado em todo movimento que rompe a estagnação [2], o qual nos colocará em novo degrau, com um outro equipamento gratificador estimulando a exploração de diferente nível evolutivo. Neste sentido, o prazer é tentação, ou prova. Deus no-lo apresenta como contendo uma contradição (voltando àquele texto mencionado de O Livro dos Espíritos). Cada expressão de recompensa traz o desafio de descobrir, através do uso da razão, o limite que, transposto, é o excesso. Este faltando, surge a reação dolorosa, constrangendo à reflexão e ao amadurecimento, não ocorridos espontaneamente. Aquele que for prudente e evitar o abuso, só experienciará a dor menor da interrupção de um prazer e do aprendizado de um novo (a dor evolução de que fala André Luiz) [3]. Não se defrontará com a dor maior da reação do determinismo evolutivo (a dor expiação, conceituada pelo mesmo autor espiritual, correspondendo a uma retroalimentação negativa).

 

DIALÉTICA HEGELIANA

 

 

 

Este particular princípio doutrinário, a nosso ver, encontra um poderoso instrumento auxiliar na sua elucidação, no seu desenvolvimento, numa proposta filosófica não espírita, a ideia de dialética hegeliana. Georg W. Friedrich Hegel [4] trouxe a original contribuição de pensar a essência evolutiva do ser espiritual e da realidade, aliás sinônimos no seu sistema filosófico. Esta essência é a do próprio pensamento, o diálogo que constitui o discurso racional. Se a realidade é o espirito, toda a evolução universal obedece à lógica do movimento espiritual, seja nas consciências individuais, seja nos esforços coletivos. É um aspecto que ele genialmente intuiu como fazendo parte tanto da argumentação racional, como do progresso histórico, que é um reflexo, é o da negação. Uma tese que é negada, para Hegel, com uma antítese, alcança um patamar superior que é uma síntese das duas proposições anteriores. Mais que uma simples concepção lógica, esta seria a própria essência da evolução universal. Todo movimento evolutivo, todo degrau da escalada do progresso, é como uma proposição que traz em si os germens da sua destruição – a negação, a sua contradição –, não para acabar simplesmente, mas para ser transformada em nova proposição, que é uma nova tese, à qual corresponderá uma nova antítese, geradora de uma outra síntese, que é por sua vez uma diferente tese, e assim sucessivamente. Esta é a “alma” da evolução, segundo Hegel. Nos parece que tal modelo pode perfeitamente ser utilizado pelo Espiritismo, coincide com a visão doutrinária (como Gustave Geley, Humberto Mariotti e Herculano Pires também acharam) [5]. A noção espírita da reencarnação é um fenômeno biológico assimilável à dialética hegeliana. Assim como a concepção do modelo hedonista das motivações humanas, que estamos analisando.

Como o próprio Hegel dizia, a dialética é o instrumento por excelência para abordarmos os movimentos trágicos do espírito sob as impulsões do progresso coletivo. Ela descreve eficazmente o desafio que faceia aquele que começa a perceber inadequadamente uma modalidade de gratificação, mas ainda tem a personalidade muito identificada com ela. É necessário deixar que dolorosamente esta contradição aflore, que a sua alma, após ter hiperapredido, ter automatizado uma determinada maneira de funcionar, que lhe parece o único horizonte disponível de criação e gratificação, morra de alguma maneira, para renascer num outro “degrau”, num outro “favo”, que a vida está lhe exigindo que explore. Um estímulo ao movimento destas forças criativas é exatamente dar-se conta de que o prazer é dialético, que ao se abandonar um prazer já incoerente com as aspirações mais legítimas da nossa alma, não estamos nos condenando à morte de toda gratificação, mas à atenuação de uma determinada expressão de recompensa, a ser substituída, como já dissemos, com vantagem, por outro prazer mais adequado, e, portanto, mais satisfatório.

A concepção hedonista tem sua força explicativa filosoficamente reforçada, ao coincidir tão precisamente com a dialética hegeliana, este persuasivo modelo lógico da evolução. O que reafirma a extraordinária relevância das motivações comportamentais, aqui salientadas, nos mecanismos evolutivos. Ao Espiritismo, com sua contribuição original, cabe um importante papel para desenvolver o conhecimento dos homens e das mulheres neste setor que lhes toca tão de perto. E acolhendo a colaboração da filosofia hegeliana, nos parece, tal tarefa será mais fácil, na elaboração de uma teoria e principalmente de uma práxis de reforma íntima.

[1] João Paulo Lacerda é médico e jornalista.

[1] Esta ideia é de Herculano Pires, em seu livro O Ser ante a Dor e a Morte, editado pela Paidéia, de São Paulo.

 

[2] Tese encontrada no livro Ação e Reação, psicografado por Chico Xavier, e editado pela FEB, no Rio de Janeiro.

 

[3] Usamos várias fontes. O próprio trabalho de Hegel (do qual existem várias traduções, mas utilizamos a versão da Enciclopédia Britânica – o volume 43 do Greats Books edição de 1990, que traz a Filosofia do Direito e a Filosofia da História). E muitos comentadores. Um texto muito didático, embora ao que saibamos não acessível em português, é The Nature of Dialectic, do livro Hegel’s Grand Synthesis: a Study of Being, Thought and History, de Daniel Berthold Bond, edição Herper, de Nova Iorque, de 1993. Está disponível na Internet (http://diogenes.baylor.edu/WWWproviders/LarryRidener/HEGEL.HTML). Em português, embora em linguagem mais técnica, destacamos os livros Ideia e Matéria (Edição Horizonte, Lisboa, 1978, vários autores, anais de um congresso, os quais incluem duas curiosas comunicações, as duas que foram apresentadas por médicos, relacionando o pensamento de Hegel à doença mental e ao universo motivacional do ser humano, angulação pouco usual e que se aproxima da temática do presente artigo) e Dialética e Liberdade (UFRGS/Vozes. 1993, editado por Ernildo Stein e Luís de Boni, com vários capítulos escritos por importantes filósofos da atualidade leitores de Hegel).

 

[4] GELEY, Gustave. O Ser Subconsciente. FEB, 1974, Rio de Janeiro.

 

[5]MARIOTTI, Humberto. Parapsicologia e Materialismo Histórico. Edicel, 83, São Paulo.

Fonte: Revista A Reencarnação (Órgão de Divulgação da Federação Espírita do Rio Grande do Sul) - Nº 413 - ANO LXXII - 2º semestre 1996.

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George Friedrich Hegel trouxe a abordagem filosófica da evolução, que se aplica as motivações: a dialética.

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